Lama, trauma, realidade e realeza: o calendário de chagas da vida petropolitana
Por Marcia Zanelatto
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Bocanha branca. Nunca pensei em ver nuvens assim, bocanha branca avançando sobre os morros pretos cravejados de casas, com o apetite trágico de um exército inimigo; um corpo monstruoso de ar branco, um gigante fantasma, assombração luminosa. Não adianta: não há metáfora que dê conta da visão que faz minhas vísceras arderem nesta madrugada enquanto acompanho pelo telefone minha irmã atravessar apavorada barreiras verticais de lama – amálgama de terra, água, casas, carros e corpos – em direção à minha mãe que a aguarda sozinha já há mais de seis horas.
Eu não estou lá, mas sinto na minha carne tudo o que minha irmã narra. Eu não estou lá, mas eu sou lá e avanço na escuridão junto com a minha irmã para ver o caminho dessa dor, ver onde nasce essa inflamação. Regurgito uma imagem. 1976. Depois da festa de casamento da minha tia, no Fusca havia duas camadas de crianças sobre uma camada de adultos. No Fusca era sempre assim e, naquela noite, para chegar em casa, não seria diferente. Chovia tanto que o Fusca patinava entre os paralelepípedos. Meu tio era intrépido, era bom nisso, bêbado se achava até melhor. E isso, o Fusca patinando sob a tempestade, era seguro e desejável diante da fúria com que o Rio Piabanha, desabando desde o Quitandinha, rasgava o bairro operário da Cascatinha. O fundo vale onde ficava – e fica – o bairro, servia de calha para a correnteza volumosa e ocre que se alargava pra cima da rua de paralelepípedos – ou seja, que se alargava pra cima de nós. Só me dei conta de que estava rezando quando alguém riu da minha ladainha aflita. Será que só eu sabia que estávamos passando de raspão pela tragédia? Alguma coisa em mim ainda está dentro daquele Fusca, aos seis anos.
As lembranças das cheias ao longo da vida se misturam. Aos oito, aos nove, aos dez, todo ano eu via acontecer. O piso branco com losangos pretos da cozinha da minha avó só voltava à tona depois de muito rodo. Todo ano o morro descia em forma de lama, cobrindo tudo em seu caminho. Vencia com facilidade as portas e se esgueirava pela casa inteira, consumindo madrugadas de esforços. Depois, bem depois, entendi que havia vidas por trás daquilo.
Em 1988, o colégio virou abrigo para centenas delas. Crianças e senhoras, colchonetes e cobertores, a sala nunca foi tão de aula. Entre minhas tarefas estava cuidar de um bebezinho bem pequeno, encantador com sua pele luminosa e macia como a noite. Ele quase não pesava em meu colo e era tão dele o meu colo que ainda posso sentir seu calorzinho. Eu o achava lindo como um grãozinho de feijão sem me dar conta do que significava o fato de entre os desabrigados só haverem pobres e, a maioria, negros. Varaus nos corredores da escola, o colorido das roupas lutando contra o cheiro ruim da umidade e a chuva insistindo em manter tudo ensopado menos as bocas. Precisava de água mineral, muita água mineral, para dar de beber a todo mundo e a gente saia pedindo água mineral para os desabrigados. O usual constrangimento na hora de pedir qualquer coisa era substituído por uma certa honra até – peço com muita honra pelos que precisam mais do que eu. A palavra era voluntária e, sob ela, a pergunta evitada crescia: por que, afinal, todo ano acontecia? Por que todo ano?
Meu colégio era o Colégio Estadual Dom Pedro II. A cidade era de Pedro. Tudo na cidade era de Pedro, e não de pedra, o que não fazia sentido já que ela é cercada de pedras, é feita sobre pedras. Mas Pedro era o imperador sobre as pedras. E o bisneto dele, talvez tataraneto dele, quando passava a cavalo, nós, as crianças, corríamos pra ver. Cavalo alto. Cavalo marrom. Crina preta. O bisneto parecia um avô; empertigado, sorria e acenava, era tudo dele ali. Por isso acenava sem tirar o chapéu. Era o príncipe. Olha o príncipe, vem ver o príncipe, o príncipe está passando: o barulho que o cavalo fazia no chão de paralelepípedos. Ferradura. Dizem que traz sorte.
Por muito tempo, parecia aos meus olhos de criança que Petrópolis era um reino. E era difícil ver que nosso bairro humilde não era senão um furo do grosso cinturão de pobreza afivelado em torno do triângulo formado pela Catedral, o Museu Imperial e o Palácio de Cristal.
Os anos se passaram. Vida adulta, eu já com filho no colo, e a coisa ainda acontecia. A noite inteira dentro de um ônibus na serra, barreira. Num outro ano, não deu pra voltar pra minha casa no Rio depois da noite de Natal. E teve outro ano que enquanto a cozinha da casa da minha irmã afundava no térreo, no segundo andar da casa a gente cogitava usar a caixa d´água como barco – aflição que hoje nos rende piada. E sempre, a cada ano, a contagem dos mortos e desaparecidos, um número que chora. Esta noite aqui, no ano de 2022, provavelmente terá engolido mais algumas centenas de vidas.
Esse calendário de chagas que marca uma vida petropolitana contém uma revelação a respeito não só da cidade, mas do Brasil: compreender que os diamantes cravados na coroa valem tudo na mesma proporção que as vidas cravadas nas encostas não valem nada. O pobre, esta ferradura, não tem existência confirmada pela coroa, ele não paga a taxa que até hoje os pedros cobram para quem quer habitar a terra real. Laudêmio, palavra mofada. Paga-se pela terra boa do príncipe; com a terra perigosa, ele não lida. A terra inabitável que deixa de ser paisagem para se tornar ameaça, ele desconhece – ela não se converte em dinheiro. O príncipe não sabe que no seu reino o pobre arrisca morrer para morar.
Agora, nesse momento, os jornais já informam centenas de mortos e previsão de chuva forte contínua. Nenhuma declaração atravessa as portas largas do palácio. O que diverte o tanatocrata? Escolher quem morre? Ou ele se diverte mais quando isso não importa?
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Madrugada desse 16 de fevereiro de 2022, minha irmã chega em casa, ampara minha mãe. A cabeça cheia de imagens terríveis, as ruas cheias de mortos, o povo cheio de príncipes. Suspeito que o trauma perdura mais do que o caos.
A ficção real se monta no imaginário da minha cidade como a bocanha branca que vi nas nuvens. A escuridão deixa claro o que jamais foi um enigma. Não são as chuvas que não podem ter direito à fúria e ao peso. Elas podem, sim, desabar exercendo toda sua potência elétrica, seus murros líquidos, seu fogo gelado. Para cair assim, ela não exige cadáveres – ao contrário dos tronos para sustentar opulência burra. Foi sob essa égide que o Brasil nasceu e é sob ela que ele morre.
A bocanha branca não é uma metáfora, ela tem cara. Ela tem mil caras. Ela tem um milhão de caras espalhadas pelo Brasil. A herança – maldição? – colonial.
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